Florescendo.


Quando essa foto foi tirada era agosto de 2016. E eu, uma mulher de 32 anos em meio a um tratamento de câncer de mama.
Já carregava pelo corpo cicatrizes enormes, o tumor e os cabelos tinham ido embora havia pouco tempo. Logo começaria mais uma etapa, radioterapia. No corpo as marcas, na cabeça uma ideia: de repente escrever poderia ajudar.
Escrever poderia me ajudar a organizar os pensamentos, tipo juntar os pedaços e tentar montar de novo algo inteiro, que fizesse algum sentido. E assim, quem sabe, eu visualizasse como e por onde prosseguir, já que voltar e recomeçar do ponto em que eu tinha partido seria impossível. Eu definitivamente nunca mais seria a mesma. Eu vivia o luto daquela Marina.
Enquanto eu fiz radioterapia eu morei na cidade onde me tratei, pois era preciso ir todos os dias ao hospital. Eu me sentia bem, apesar da bagunça que tinha virado a minha mente. Pedi à minha família que me deixasse ficar lá sozinha, não quis nenhum acompanhante. Senti que eu precisava mergulhar em mim mesma, passar os dias praticamente sozinha e em silêncio. E assim o fiz.
Escrever poderia ajudar, então eu comecei. De início trechos isolados, pensamentos vagos, algumas informações para embasar, alguns conteúdos para provocar. E aquilo foi tomando corpo e eu, que não sou escritora, todo dia me deparava de novo regando aquela semente, até que a vi germinando.
De algo que eu fazia exclusivamente pelo meu bem, passei a pensar se poderia se tornar algo a compartilhar, que pudesse beneficiar a mais alguém. Por que ecoavam algumas vozes de pessoas que relatavam que minha postura as surpreendia, ou mesmo as inspirava, a forma como eu respondia ao que vinha vivendo. Então eu passei a tentar entender o que me mobilizava, e que as comovia, e a pensar se isso tinha potencial para se tornar mundo.
De lá para cá escrevi por vezes mais, por vezes menos, dei pausas, quis abandonar, avancei, foram muitos os movimentos, e bem diversos. Mas a intuição sempre voltava a apontar para isso, e a escrita se dava conforme os processos internos aqui ocorriam, eu percebi. Então respeitei a alternância das minhas estações, mas meio que de uns tempos para cá me vi sem alternativa, já era tempo. Se sou boa escritora ou não, minha escrita tendo potencial ou não, se outras pessoas irão usufruir ou não, importava mais que eu a colocasse a serviço, por que de uma muda singela isso tinha virado uma árvore aqui dentro, que crescia e se expandia, estava robusta e não cabia mais só internamente.
Quando eu entendi que era para virar livro eu dei esse formato ao que brotou do meu processo de transcrever em palavras um sentir e a reflexão acerca da experiência complexa de transformação que vivi, e mais, dela situada e expandida, por que não haveria de ser um livro sobre mim, nem sequer sobre câncer exatamente. Eu estava era interessada em abordar a questão do manejo do sofrimento frente a situações de crise, que podem ser ou não decorrentes de uma doença, de modo a superá-las da melhor maneira possível. Mas ele, o agora livro, ainda ficou alí, paradinho por um tempo, só amadurecendo.
2018, outra Marina, uma nova vontade de colocar isso para fora. Foi direcionar energia, dar alimento e luz, para perceber que começava a ganhar vitalidade, e muitos aspectos favoráveis lindamente foram confirmando que era o momento. Acionei, e aconteceu. É primavera, e floresceu!
Foi em setembro de 2015 que eu pela primeira vez senti um nódulo na mama. Em dezembro do mesmo ano ficou comprovado que era maligno. Não foi uma primavera colorida essa, mas olha só, antes de chegar a próxima eu já estava com essa semente plantada em mim, como essa foto aponta. Eu regei, cuidei, replantei quantas vezes foi necessário, e confiei que ela daria frutos. E hoje, dia em que a mesma estação novamente se inicia, eu estou aqui para contar que irei colhê-los.
Meu livro será lançamento mês que vem, outubro, um mês tão representativo para a causa. Achei oportuno ele ser oferecido nessa ocasião, pois o assunto fica em pauta e quero que esse livro seja lido pelo máximo de pessoas possível, pacientes ou não, especialmente por que o lucro a ser obtido com a venda será destinado ao hospital. Com o livro me sinto como que semeando, espalhando sementes que acredito podem fazer germinar coragem, esperança, auto-amor, felicidade e plenitude onde repousarem.
Jamais conseguirei retribuir à altura tudo o que a vida me proporcionou de bom, mas quero tentar. Essa coisa de vida, com a qual me encanto cada vez mais, me inspirou a escrever “Não se acostume com a vida: reflexões que o câncer e outras situações complexas podem despertar em nós”. O dia de hoje marca o início da primavera, assim como marca simbolicamente o início de um novo ciclo para mim, no qual quero partilhar com outras pessoas o que colho.
Agradeço a todos que passaram, aos que ficaram, aos antepassados e aos que ainda virão, a Deus e a Deusa, Natureza, fértil e generosa. Hoje estou viva, e florida.