Indicações - Carlos Drummond de Andrade
Talvez uma sensibilidade maior para o frio.
O desejo de voltar mais cedo para casa.
Certa demora em abrir o pacote de livros
esperado, que trouxe o correio.
Indecisão: irei ao cinema?
Dos três empregos de tua noite escolherás: nenhum.
Talvez certo olhar, mais sério não ardente,
que pousas nas coisas, e as coisas compreendem.
Ou pelo menos supões que sim. Elas são fieis, as coisas de teu escritório. Uma caneta velha. Recusas-te a trocá-la pela que encerra o último segredo químico, a tinta imortal.
Certas manchas da mesa, que não sabes se o tempo, se a madeira, se o pó, trouxeram consigo. Bem a conheces, tua mesa. Cartas, artigos, poemas saíram dela, de ti. Da dura substância,
do calado, da floresta partida elas vieram,
as palavras que achaste e juntaste, distribuindo-as,
A mão passa
na aspereza. O verniz que se foi. Não. É a árvore que regressa. A estrada voltando.
É Minas que espreita,
que espera, longamente espera tua volta sem som.
Tua mesa se torna leve, e nela viajas
em ares de paciência, acordo, resignação.
Olhai a mesa que foge, não a toqueis.
Sobre telhados
ela passa, nada temais. É a mesa valente,
de suas gavetas saltam papeis escuros, enfim os libertados segredos,
sobre uma terra metálica se espalham, se amortalham, e calam-se.
De novo aqui, miúdo território
civil, sem sonhos. Como pressentindo que um dia se esvaziam os quartos, se limpam as paredes,
e para um caminhão e descem homens,
e num livro municipal se cancela um registro,
olhas fundamente o risco de cada
coisa, a cor
de cada face dos objetos familiares.
A família é, pois, uma arrumação de móveis, uma soma de linhas, formas, superfícies. São portas,
chaves, pratos, camas, embrulhos obscuros,
também um corredor, e o espaço
entre o armário e a parede
onde se deposita certa porção de silêncio, traças e poeira
que de longe em longe se remove… e insiste.
Certamente faltam muitas explicações, seria difícil
compreender, mesmo ao cabo de longo tempo, porque um gesto
se faz, outro se frustrou, tantos esboçados,
como seria impossível guardar todas as vozes
ouvidas ao almoço, ao jantar, na calma da noite,
um ano, depois outro, e outros e outros,
todas as vozes ouvidas numa casa durante quinze anos.
Entretanto elas devem estar em alguma parte; acumularam-se,
embeberam-se nos degraus, invadiram canos,
informaram velhos sapatos, perderam a força, o calor,
hoje existem em subterrâneos, umas na memória, outras por baixo do sono.
Como saber? A princípio parece deserto,
como se nada ficasse, e um rio corresse
em tua casa, tudo absorvendo.
Lençóis amarelecem, gravatas puem,
a barba cresce, cai os dentes caem,
os braços caem,
caem partículas de comida de um garfo hesitante,
as coisas caem, caem, caem,
e o chão está limpo, é liso.
As pessoas deitam-se, são transportadas, desaparecem,
e tudo é liso, salvo teu rosto
sobre a mesa curvado, e tudo imóvel.
O desejo de voltar mais cedo para casa.
Certa demora em abrir o pacote de livros
esperado, que trouxe o correio.
Indecisão: irei ao cinema?
Dos três empregos de tua noite escolherás: nenhum.
Talvez certo olhar, mais sério não ardente,
que pousas nas coisas, e as coisas compreendem.
Ou pelo menos supões que sim. Elas são fieis, as coisas de teu escritório. Uma caneta velha. Recusas-te a trocá-la pela que encerra o último segredo químico, a tinta imortal.
Certas manchas da mesa, que não sabes se o tempo, se a madeira, se o pó, trouxeram consigo. Bem a conheces, tua mesa. Cartas, artigos, poemas saíram dela, de ti. Da dura substância,
do calado, da floresta partida elas vieram,
as palavras que achaste e juntaste, distribuindo-as,
A mão passa
na aspereza. O verniz que se foi. Não. É a árvore que regressa. A estrada voltando.
É Minas que espreita,
que espera, longamente espera tua volta sem som.
Tua mesa se torna leve, e nela viajas
em ares de paciência, acordo, resignação.
Olhai a mesa que foge, não a toqueis.
Sobre telhados
ela passa, nada temais. É a mesa valente,
de suas gavetas saltam papeis escuros, enfim os libertados segredos,
sobre uma terra metálica se espalham, se amortalham, e calam-se.
De novo aqui, miúdo território
civil, sem sonhos. Como pressentindo que um dia se esvaziam os quartos, se limpam as paredes,
e para um caminhão e descem homens,
e num livro municipal se cancela um registro,
olhas fundamente o risco de cada
coisa, a cor
de cada face dos objetos familiares.
A família é, pois, uma arrumação de móveis, uma soma de linhas, formas, superfícies. São portas,
chaves, pratos, camas, embrulhos obscuros,
também um corredor, e o espaço
entre o armário e a parede
onde se deposita certa porção de silêncio, traças e poeira
que de longe em longe se remove… e insiste.
Certamente faltam muitas explicações, seria difícil
compreender, mesmo ao cabo de longo tempo, porque um gesto
se faz, outro se frustrou, tantos esboçados,
como seria impossível guardar todas as vozes
ouvidas ao almoço, ao jantar, na calma da noite,
um ano, depois outro, e outros e outros,
todas as vozes ouvidas numa casa durante quinze anos.
Entretanto elas devem estar em alguma parte; acumularam-se,
embeberam-se nos degraus, invadiram canos,
informaram velhos sapatos, perderam a força, o calor,
hoje existem em subterrâneos, umas na memória, outras por baixo do sono.
Como saber? A princípio parece deserto,
como se nada ficasse, e um rio corresse
em tua casa, tudo absorvendo.
Lençóis amarelecem, gravatas puem,
a barba cresce, cai os dentes caem,
os braços caem,
caem partículas de comida de um garfo hesitante,
as coisas caem, caem, caem,
e o chão está limpo, é liso.
As pessoas deitam-se, são transportadas, desaparecem,
e tudo é liso, salvo teu rosto
sobre a mesa curvado, e tudo imóvel.
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